quinta-feira, 10 de março de 2011

Lepra

“Alguém estava a apressar os cortinados (…) Olhos húmidos, inteligentes, temperados pelo tempo e por um conhecimento demasiado vasto do sofrimento humano. Não havia dúvidas. Era M.Das. O poeta aproximou-se mais, e eu agarrei-me à borda da mesa num movimento convulsivo.
Estava perante uma coisa saída de um tumulo(…)
Dentes cintilavam, trocistas, num riso incontrolável, pois os lábios estavam tão apodrecidos, que deles só restavam pólipos de carne flácida. Nariz, já quase não tinha. Fora devorado, até se transformar numa membrana húmida e pulsante de carne esfolada, incapaz de esconderas duas aberturas que conduziam ao crânio (…) As crostas escamosas, irregularmente distribuídas, cobriam-lhe a cabeça, deixando aqui e ali, nos ângulos mais estranhos, tufos erectos de cabelos brancos. A orelha esquerda era uma massa informe (…) faltavam dois dedos da mão direita, partidos a meio da articulação. Um pedaço de desperdício cobria o que sobrava da mão esquerda, sem conseguir esconder as zonas putrefactas à volta do pulso, onde eram perfeitamente visíveis os músculos e os tendões. A cabeça maciça bamboleou como se o pescoço fosse incapaz de a sustentar. Os farrapos sobre o peito subiram e desceram num ritmo apressado. O quarto encheu-se com os sons aflitos das nossas respirações.


- Lepra! – Sussurrei, mas foi como se estivesse a gritar. A chaminha ondulou, ameaçando-se extinguir-se. Uns olhos castanhos líquidos, cujas pálpebras tinham sido particularmente comidas, observaram-me do outro lado da lamparina…”

- Descrição do poeta M.Das, Cançao Kali, 1985, p.155/156

Sem comentários:

Enviar um comentário